Marinete
dos Santos Silva
LESCE/CCH/UENF
Atelier de Estudos de Gênero - ATEGEN
O pensamento conservador no Brasil
tem, no meu entender, uma vertente apocalíptica. Quando algo o contraria, faz
previsões catastróficas. Lembro-me do ano de 1974 quando o projeto de lei que
instituiu o divórcio estava sendo debatido. Os que não queriam o divórcio
argumentavam que caso a lei passasse no Congresso Nacional, a família
brasileira estaria ameaçada. Seria o apocalipse: lares desfeitos, crianças com
os pais separados etc. O divórcio virou lei porque o Estado precisava regularizar a situação de milhares de filhos
de pais desquitados ou separados que eram tidos como bastardos. A lei do
divórcio veio, para regularizar essa situação e dar às pessoas infelizes no
casamento, a possibilidade de recomeçar uma nova vida. Os católicos nunca admitiram
o divórcio sob a alegação de que o que “Deus uniu o homem não separa”. Dessa
forma, pressupõe-se que os católicos não se divorciem e continuem a levar em
frente uma união infeliz e mortificante. O Estado brasileiro, que é laico desde
a 1ª Constituição Republicana datada de 1891, não se pautou pelos preceitos
católicos e sancionou o divórcio deixando aos não-católicos a possibilidade de utilizá-lo
em caso de necessidade.
Durante os debates sobre o divórcio,
os que a ele eram contrários acamparam na porta do Congresso Nacional em
vigília, fazendo previsões terríveis a respeito do que viria caso ele fosse
aprovado. Essas previsões não se concretizaram, a família não acabou, os
casamentos continuaram a acontecer e os divórcios também.
Nos anos 90 do século passado foi
instaurado um grande debate sobre o salário mínimo que valia menos de 100
dólares. Um senador do PT do Rio Grande do Sul, Paulo Paim quase que
diariamente subia a tribuna para falar daquilo que ele considerava uma vergonha
nacional: o salário mínimo abaixo de 100 dólares. De certa feita, no auge da
empolgação, rasgou um exemplar da Constituição Brasileira sob a alegação de que
os seus preceitos de nada valiam, pois o salário mínimo que era pago ao
trabalhador brasileiro a desrespeitava.
Os contrários ao aumento do mínimo
argumentavam que caso ele chegasse a 100 dólares as empresas quebrariam e o
país não resistiria. O tempo passou, o governo de Fernando Henrique Cardoso
acabou e o que vimos no governo subseqüente do Presidente Lula foi o aumento do
salário mínimo que hoje gira em torno de 300 dólares. As previsões
catastróficas dos que eram contra não se cumpriram. Pelo contrário, a economia
do país vai bem e vemos um aumento do poder de compra das pessoas em geral. Observamos,
também, a emergência da famosa classe C, formada segundo o que dizem as fontes
oficiais – IBGE, FGV – por milhares de pessoas que hoje têm acesso a bens de consumo
como viagens de avião, antes só acessíveis aos mais ricos.
Na primeira década do século XXI o
debate girou em torno dos homossexuais, que foram às ruas em passeatas que
reuniam milhares de pessoas, reivindicando a união civil entre pessoas do mesmo
sexo e a criminalização da homofobia.
Novamente os conservadores fizeram
previsões catastróficas: será o fim da família, não podemos aceitar tal coisa.
O Estado, mais uma vez, pautou sua ação não pela ética religiosa, cristã, mas
pela sua própria lógica. Se os homossexuais – mulheres e homens – já vivem
juntos independentemente de ser legal ou não a sua união, que a mesma se
legalize e que os cidadãos e cidadãs que trabalham e pagam seus impostos possam
regularizar a sua questão patrimonial e sucessória, assim como os benefícios
dos planos de saúde e pensões. O Supremo Tribunal Federal bateu o martelo e
hoje a união civil entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade legal. E a
família como vai? Essa vai muito bem, pois os gays já estão até adotando crianças
e tocando suas vidas. O mundo, ao que tudo indica, não acabou.
Nos dias que correm, parece que a
questão eleita pelo pensamento conservador é o aborto. O Código Penal
Brasileiro, que data de 1947, prevê a possibilidade de aborto em dois casos:
risco de vida para a mãe e gravidez proveniente de estupro. Embora previstos em
lei, as mulheres brasileiras não podiam se beneficiar dessas possibilidades,
pois as mesmas não haviam sido regulamentadas. Somente no governo de Fernando
Henrique Cardoso, durante a gestão de José Serra à frente do Ministério da
Saúde, é que houve essa regulamentação. A possibilidade de aborto em caso de
feto anencéfalo, só recentemente entrou na pauta das discussões, em face da
decisão do STF permitindo-o. Parece, entretanto, que o pensamento conservador
não gostou da decisão do Supremo, e volta à carga prenunciando um novo fim do
mundo.
O aborto até 12 semanas de gestação
é um direito das mulheres em todos os países desenvolvidos da Europa: França,
Alemanha, Noruega, Itália, Suécia, Holanda, Dinamarca, Finlândia, Inglaterra,
Suíça e até Portugal, considerado um país extremamente conservador. No
continente americano, ele é permitido nos Estados Unidos e no Canadá. Foi um
direito conquistado pelo movimento feminista, que se articulou com vários outros setores da sociedade nos anos
60 – os chamados Anos Rebeldes – e que foi para as ruas exigindo os direitos
expressos nos slogans: “trabalho igual, salário igual” e “meu corpo me
pertence”. Nesse último slogan estava impresso o desejo das mulheres de
controlar o próprio corpo, onde se dá a gestação.
Vale lembrar que a 4º Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada pela
ONU em Pequim em 1995, e que contou com a participação do Brasil, exarou um
documento final do qual o nosso país é signatário. Por ele, os direitos sexuais
e reprodutivos das mulheres são considerados direitos humanos e devem ser
respeitados por todos os países que o assinaram. Não é, pois de se estranhar,
que na sequência tenha sido regulamentado no Brasil o aborto em caso de estupro
e de risco para a vida materna e que o STF tenha legalizado o aborto em caso de
anencefalia. Essas medidas não foram, pois, urdidas por “grupelhos de
esquerda”, foram o resultado de compromissos legais assumidos pelo Brasil
internacionalmente.
A Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, atualmente chefiada
pela socióloga Eleonora Menucucci já fala da legalização do aborto até 12
semanas de gestação como uma medida de saúde pública e antes dela, o Ministro
da Saúde do governo Lula, José Gomes Temporão, já havia batido na mesma tecla.
No Brasil são feitos por ano milhares de abortos ilegais com consequências
funestas para as mulheres. São utilizados talos do mamoeiro, agulhas de tricô,
chás de ervas que causam intoxicações graves, sondas e Citotec. As mulheres
pobres são as mais vitimizadas, pois só tem acesso ao aborto inseguro e
realizado em péssimas condições de higiene. Invariavelmente, acabam em um
hospital do SUS para a realização de curetagem e combate às infecções que
sobrevém. Ocupam leitos, gastam recursos públicos e dão prejuízo ao Estado.
Muitas ficam internadas por vários dias. As mulheres ricas e de classe média se
dirigem às clínicas de aborto que existem por todo lado na capital do nosso
Estado e pela quantia de mil e quinhentos reais, fazem um procedimento
razoavelmente seguro com anestesia e que dura cerca de 10 minutos. Saem da
clínica caminhando, sem problemas e podem retomar a vida normal no dia
seguinte. O fato de o aborto ser proibido não impede que as clínicas estejam
abertas ou que o Citotec seja vendido nas farmácias. As mulheres,
historicamente, sempre procuraram alternativas para uma gravidez indesejada e
continuaram a fazê-lo independentemente de ser considerado crime ou pecado.
O Estado brasileiro, que é laico, mais uma vez busca pautar sua ação não
pela ética cristã, muçulmana ou budista, mas pela racionalidade econômica. O
aborto é uma realidade. O estado despende grande soma de recursos para tratar
das sequelas dele provenientes. É, portanto, mais barato financiar um aborto
seguro, em boas condições higiênicas e que não necessita de internação. As leis
e decisões judiciais vêm sempre ao encontro daquilo que a sociedade já pratica.
Elas não surgem, em geral, em função de pequenos grupos, sejam de esquerda ou
de direita.
Geralmente, o pensamento conservador contrário ao aborto fala em
preservar a vida, mas esquece que o conceito de vida é uma decisão
sociocultural e que tem uma historicidade. Na Idade Média, por exemplo, a
Igreja Católica permitia o aborto até o feto movimentar-se no ventre materno, o
que se dá por volta do quarto mês de
gestação. Considerava-se que só então se tratava de um ser humano. Quando
afinal começa a vida? Poderíamos determinar o seu começo no sêmen do homem.
Nesse caso dever-se-ía proibir a masturbação masculina? Ou então no óvulo da
mulher. A menstruação das mulheres deveria então ser proibida?
A Igreja Católica é contrária às experiências científicas com células
embrionárias e tentou impedi-las acampando na porta do STF. Novamente esse
tribunal considerou legal essas experiências, não entendendo como vida o
embrião que seria descartado pelas clínicas de fertilização humana.
Nesse debate acerca da implantação do aborto no Brasil – com um atraso de
40 anos em relação aos países desenvolvidos, é bom que se diga – o falso
moralismo desempenha um papel importante. Na última eleição presidencial vimos
a esposa do candidato José Serra acusar a atual presidenta Dilma Roussef de
“abortista” e de “assassina de criancinhas” pelo fato da mesma ser favorável à
legalização do aborto. Em meio ao debate, a máscara da senhora tão favorável à
vida, caiu quando uma de suas alunas revelou que ela havia feito um aborto no
Chile, quando José Serra era refugiado político. Muitos homens e mulheres que
já pagaram abortos ou já o fizeram procuram, talvez, purgar a culpa que sentem
por acreditarem ter feito algo errado, com uma posição radical contrária à sua
legalização. Creio que devemos ter bom senso
e pensarmos que chegou o tempo de as mulheres deixarem de ser objetos da
reprodução e passarem a ser sujeitos da mesma. A legalização do aborto não
significa que todas as mulheres serão obrigadas a fazê-lo. As que são
contrárias, evidentemente, não o farão. Entretanto, as demais terão ao seu
dispor essa possibilidade, caso assim o desejem. A lógica do Estado não está
pautada, portanto, em qualquer tipo de ética religiosa. Que isso fique bem
claro para todos e todas.
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