terça-feira, 22 de novembro de 2011

Para refletir sobre mulher e política

Mulheres e cidadania: uma reflexão*
                                                   
Profª Drª Marinete dos Santos Silva
Professora Associada LESCE/CCH/UENF

Coordenadora do Atelier de Estudos de Gênero - ATEGEN



No dia seis de outubro de dois mil e onze, a Rádio CBN do Rio de Janeiro, que faz parte do Sistema Globo de Rádio, veiculou em seu programa “Jornal da CBN” a notícia de que três mulheres negras haviam ganho o Prêmio Nobel da Paz. Três comentaristas dessa emissora – Arthur Xexéo, Viviane Mosé e Carlos Heitor Cony – que atuam no quadro intitulado “Liberdade de Expressão”, emitiram imediatamente  opinião contrária à decisão do Comitê do Nobel sob a alegação de que a divisão do Prêmio entre três mulheres havia ofuscado sua grandeza. O mais interessante é que no dia anterior havia sido divulgado o Prêmio Nobel de Medicina que igualmente contemplara três pessoas, no caso três homens – um canadense, um francês e um norte-americano. Não houve nenhum comentário sobre a perda de brilho da premiação pelo fato de ter sido dividida entre três pessoas. Disso concluímos que a divisão do Prêmio entre três homens brancos e ocidentais é perfeitamente cabível, mas que a divisão entre três mulheres negras de países não ocidentais é absurda. O que estaria por trás dessa incongruência?

            Para o senso comum não haveria problema. Entretanto para uma cabeça pensante de sociólogo ou de historiador atento à temática de gênero isso pode revelar muita coisa. A primeira delas é que as mulheres causam incômodo quando se envolvem com questões que tradicionalmente são consideradas não pertinentes a elas. Que questões são essas afinal? Falo aqui de Política – com “P” maiúsculo -  ou seja, aquela que envolve diretamente as questões ligadas ao poder na esfera pública.
            Ao longo da história, as mulheres foram consideradas seres incapazes para decidir os destinos de sua comunidade. Fazer a guerra ou fazer a paz, abandonar um território ou continuar nele, sempre foram decisões eminentemente masculinas. Na Grécia Antiga, terra da Democracia e da Cidadania, elas estiveram todo o tempo afastadas das lides políticas. Não eram cidadãs assim como os escravos e os estrangeiros. Ficavam restritas à procriação e às tarefas a ela ligadas. A Civilização Romana e o mundo medieval também não reservaram a elas nenhum espaço decisório. Às portas da modernidade, Rousseau – filósofo iluminista –, em seu Emílio ou da educação, considerava que as mulheres eram seres inferiores e naturalmente incapazes para assumir qualquer atividade na esfera pública. Deveriam contentar-se com o lar, a maternidade e a religiosidade, que para elas era necessária, mas não para o homem. As ideias de Rousseau, exaradas em pleno movimento revolucionário de 1789 fizeram escola. Estabelecia-se, pois, um paradoxo, como bem revela Joan Scott em seu A cidadã paradoxal. Em um momento em que se falava de cidadania e da liberdade, as mulheres foram privadas como nunca desses direitos. O projeto rousseauniano de domesticação das mulheres obteve pleno êxito. As vozes que se levantaram contra o mesmo, como Olympe de Gouges – guilhotinada por sua ousadia de redigir a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” –  e de Condorcet, grande pensador e um dos poucos a afirmar que a cidadania deveria ser extensiva às mulheres, foram silenciadas.
            A reação a esse pensamento só viria a partir da segunda metade do século XIX, com John Stuart Mill e o seu A sujeição das mulheres e com o movimento sufragista. Mill considerava que a incapacidade das mulheres para a cidadania se dava pelo fato das mesmas serem educadas para serem tolas. Dando-se a elas uma educação semelhante  àquela dada aos homens elas deixariam de sê-lo e estariam aptas a participar de todas as questões ligadas à polis.
            As sufragistas, por seu turno, dedicaram-se a reivindicar aquilo que consideravam a essência da cidadania: o direito ao voto. Embora a luta fosse renhida, travada na Inglaterra, EUA e na França na segunda metade do século XIX, só trouxe efetivos resultados no século XX. Para não nos afastarmos da nossa realidade mais imediata, essa batalha no Brasil, perpassou os anos 20 do século passado, tendo os seus primeiros frutos em 1932, quando as brasileiras puderam votar e serem votadas.
            Esse fato, entretanto, não alterou significativamente a situação das mulheres tal qual se pensava. Ainda hoje elas continuam sub-representadas no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores. Embora sejam a maioria da população brasileira e do alunado das universidades públicas e privadas são minoria nos partidos políticos. Isso quer dizer que mulher e política não combinam? O que tem a política que afasta as mulheres? E porque quando elas se envolvem com política ficam tão mal vistas? Vide o caso de Dilma Roussef, nossa presidenta, que ora é tida como extremamente dura e masculinizada – e por isso detestada – e, em outros momentos, é tida como incapaz de dar conta da dura tarefa de ser a primeira mandatária da nação. Ou ainda, na melhor das hipóteses, é vista como mãe – a “mãe do PAC”, nas palavras do ex-presidente Lula – ou “mãe dos brasileiros”. Não podemos nos esquecer que no auge da campanha eleitoral Dilma Roussef teve que “provar” que era mãe para ser considerada uma “boa candidata”. Mostrou para a imprensa o ex-marido, a filha e o neto recém-nascido. Algum candidato homem fez isso? Porque será que ninguém a vê simplesmente como um quadro político semelhante a um outro qualquer? Na atualidade, a presidenta ainda realiza uma “faxina” na corrupção, quando normalmente os presidentes promovem o combate à corrupção. Há ainda uma expressiva reticência em chamá-la de presidenta, como se isso fosse uma verdadeira aberração.
            Na verdade a entrada das mulheres na política é recente e, por isso mesmo, causa tantas reações adversas. Ainda estamos sob a égide de um rousseanismo que teima em não morrer. Em virtude disso a imagem da mulher-mãe ainda é tão marcante e onipresente. Por isso o fato de três mulheres ganharem o Prêmio Nobel da Paz não é bem visto. E, em se tratando de três mulheres negras não-ocidentais, a avaliação é um pouco pior.
            Essa pretensa “incapacidade” das mulheres para a Política é tão veiculada em nossa cultura e tida como verdade que, dois jornalistas bastante conhecidos e uma “filósofa” emergente se arvoraram em tecer considerações sobre o fato do Prêmio Nobel da Paz ter sido dado à presidenta da Libéria Ellen Jhonson Sirleaf, a militante liberiana pela paz Leymah Ghowee e a jornalista e ativista iemenita Tawakkul Karman.
            O Poder tem uma face predominantemente masculina. Nas mais de 800 sociedades conhecidas e estudadas por historiadores, sociólogos e antropólogos ele sempre escapou às mulheres. A partir do século XVIII com a invenção do cidadão e da igualdade entre todos os seres humanos, passou-se a discutir se a mulher era efetivamente um ser humano igual ao homem. Parece que essa discussão, pelo visto, ainda não foi totalmente superada, vide as alegações de que a mulher quando envolvida com a política pode engrandecê-la com suas especificidades: a doçura, a sua infinita capacidade de amar e perdoar, seu desvelo e sua capacidade de cuidar dos outros. Essas características não são exclusivas das mulheres e, portanto não deveriam contar para justificar a sua inclusão na política. Pelo visto ainda temos muito o que caminhar. As mulheres não são seres especiais. Elas são iguais aos homens para o bem e para o mal. São cidadãs que, certamente, tal qual os pertencentes ao sexo masculino, podem trazer uma contribuição importante para a política. Elas, portanto, não precisam provar nada. Só precisam de vontade e disposição para se entregar aos assuntos da República.

*Texto originalmente apresentado no I Simpósio de Neurociências da UENF, promovido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Neuropsicologia Cognitiva (NEPENC).

Um comentário:

  1. O conjunto de argumentações contido neste excelente texto analisa o modo sutil como o preconceito (aqui em torno das mulheres) é exercido largamente por quem se declara isento dessa prática, o jornalista, escritor, o filósofo, etc. Parabéns.

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